sábado, 17 de abril de 2010 Tags: 0 comentários

II- LEITURA DE SÁBADO : MARIA DUPLESSIS

Fiz promessa, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.

E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.

Soube que, após um longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.

Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subira tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vêm falar dos mortos ao vivente.

Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria

Sentei-me à mesa, onde contigo outrora
Em noites belas de verão ceava;
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.

Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morriam inda algumas flores...

Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.

Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias...
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.

As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio depusesse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.

Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater hora por hora!

Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já te queimava a febre ardente.

Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que dormes,
A turba dos festins que acompanhaste?

A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.

Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.

Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dous amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.

'Em 1858, eu e o meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer uma tradução livre ou paráfrase destes versos de Alexandre Dumas filho. No dia aprazado apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele foi publicada, não me lembro em que jornal.' (Nota do autor)

Em Maria Duplessis, Machado de Assis não homenageia uma mulher pela qual se apaixonou quando, em 1858, no Rio de Janeiro, decantou-a em seus versos. Antes, nos revela seu amor pela literatura e nos presenteia com a tradução de uma uma versão condensada do romance 'A Dama das Camélias', publicado em 1848 pelo escritor francês Alexandre  Dumas Filho.
Em rimas, Machado nos reconta a triste história de uma cortesã: seus amores maritais, suas vaidades; sua vida fugaz sendo tragada pela tuberculose que, nos idos do século XIX, era uma doença incurável e o abandono no qual viveu seus últimos dias. O poema, é como se fosse narrado pelo amante de Maria Duplessis, um jovem estudante de direito que, no romance original personifica o próprio Dumas Filho.
Machado de Assis é fascinante em todos os gêneros que se dispôs a escrever: crônicas, contos, romances, poesias! O manejo com as palavras: a forma como as dispõe, como as ordena em seus textos, tornando-as tão fáceis de entender e tão apaixonantes para os consumidores de leitura, até diria, tão atraentes para os que, por obrigação curricular leem Dom Casmurro e se questionam sobre a conduta da intrigante Capitu.
O melhor de tudo: toda a obra Machadiana é nossa! Está amparada pelo  Domínio Público, a Lei nº 9.610/1998 que, no Brasil, assegura os direitos autorais  em vida e por  mais 70 anos, contados de 1º de janeiro do ano seguinte a morte do autor, decorrido esse prazo, toda produção intelectual ( bens culturais, de tecnologia ou de informação) não é mais espólio de um único indivíduo ou herança familiar porém, INTEGRA O PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE.
Acesse  a obra completa de Machado de Assis em http://www.dominiopublico.gov.br/ .

O poema Maria Duplessis  também pode ser lido no livro Crisálidas, Falenas e Americanas - Obras completas de Machado de Assis, publicado pela Editora Globo em 1997.
Cléa Morais

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